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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Uma caçada de Bugres

História - Colonização Alemã - Massacre dos índios Vale do Itajai e região
Presidente do Instituto Sesquicentenário de Brusque
O ataque liderado pelo terrível Martinho Bugreiro contra os índios remanescentes da região de Brusque, há 100 anos, ainda desperta controvérsias e questionamentos. São heróis, justiceiros, matadores de aluguel ou frios assassinos os matadores de índios? Conhecidos por bugreiros, tinham o apoio de parte significativa da comunidade brusquense, inclusive da Prefeitura (então Superintendência Municipal).
Os índios que freqüentavam a região do vale do Itajaí Mirim, chamados de bugres, pertenciam aos Xokleng, do grupo lingüístico dos Jê. Eram Arredios, agressivos e de acentuada resistência sócio-cultural. Conservavam seus padrões de cultura e organização social. Andavam nus e enterravam seus mortos nos ranchos que abandonavam. A atividade de subsistência era centrada na caça e na coleta de alimentos na natureza. Não praticavam a agricultura.
Para a busca da compreensão do documento abaixo publicado - de autoria do padre alemão Francisco Schüler scj, vigário coadjutor da Paróquia São Luís Gonzaga em 1905 e traduzido do alemão para o português pelo padre Eloy Dorvalino Koch,scj - é imprescindível nos transportarmos para o ambiente de então. Índios, que há dezenas de séculos ocupavam toda a região e que pelo direito natural lhes pertencia. Europeus, que mediante pagamento, haviam adquirido um lote de terras do governo imperial brasileiro. O conflito configurava-se previsível. Também ressalte-se que o conhecimento e o respeito para com a diversidade étnica e cultural encontrava-se há anos luz do atual estágio da civilização, ainda marcado por barbáries indescritíveis.

Paulo Vendelino Kons
Presidente do Instituto Sesquicentenário de Brusque


UMA CAÇADA DE BUGRES
Pe. Francisco Damasceno Schüler[1]
Eloy Dorvalino Koch,scj (Tradutor)

É dia de Carnaval. Sendo também feriado escolar, resolvi comunicar-lhes algumas novidades.
Ultimamente, as Colônias daqui, de Brusque e Blumenau, foram assaltadas por alguns bandos de indígenas. É provável que os Botocudos sejam a tribo mais selvagem da América do Sul, e nada amiga dos brancos. Ora assaltam um grupo de pessoas em plena estrada, ora se dirigem a casas isoladas à beira da mata e as saqueiam, para, em seguida, sumirem com a rapidez com que apareceram. Não poucos colonos, em suas isoladas propriedades na mata, foram vítimas de tais assaltos. Por aí se explica o receio deles, e o desejo de vingança mediante perseguições punitivas contra esses bandidos. Quero, pois, segundo a reportagem do jornal Novidades, relatar-lhes o assalto em Brusque.
[a] Na localidade Sibéria [Brusque], os bugres (assim se denominam aqui esses bandidos botocudos), irromperam da floresta e assaltaram a casa do colono Avelino Correia, e a saquearam por completo. Enquanto o marido, estirado num banco, dormia a sesta, a mulher lavava roupa num cocho, que ficava entre a casa e a cozinha. De repente, perto dela, caiu uma flecha. A mulher virou-se e viu os bugres. Aos gritos, alertou o marido dizendo que a casa estava cercada pelos índios. Ela refugiou-se no interior da casa. Enquanto o marido cuidava da casa, a mulher saiu pela porta da frente, em busca de socorro junto aos vizinhos. Ela caminhava pelo milharal. A menos de 50 m distante da casa, saltou um índio diante dela para agarrá-la. Evitou-o um fiel cachorro, defendendo a sua dona. Pelo fato de haver outros índios no milharal, a mulher teve de voltar, e tomar outro caminho. Uma flecha disparada contra ela, pelas costas, felizmente só lhe atingiu o vestido. Mas foi alvejada nas costas por um porrete. Avelino tentava afugentar os bugres. Estes, porém, tornavam-se mais e mais atrevidos, obrigando-o a fugir. Nas proximidades da casa do vizinho, encontrou dois homens e um garoto. Com eles, voltou ao local. Porém, as armas ruins e o medo do pessoal não permitiam que Avelino se decidisse por um ataque aos bugres. Teve que abandonar a sua casa, que foi toda saqueada pelos índios. Podia-se observar como eles carregavam as coisas da casa morro-acima.
[b] Um pouco depois, ocorreu outro assalto em Porto Franco [hoje, Botuverá], onde foi morto um colono. Ele e dois companheiros encontravam-se na mata ocupados com armadilhas. De repente, eis que um índio o assaltou pelas costas, e o traspassou com uma lança. O infeliz logo sucumbiu. Exclamando “ó meu Deus!”, morreu. Porto Franco pertence à nossa Paróquia [de Brusque], a 32 km daqui. No dia anterior ao assalto, Pe. João Stolte[2] viajara para lá a cavalo, e pôde fazer o enterro do colono. No dia seguinte, devia ele visitar um enfermo. Conquanto muito longe do local do assalto, exigiu que o acompanhassem seis homens armados. Embora cavalgando, por longo tempo, pela mata virgem, não encontraram sinal algum dos bandidos.
[c] No entanto, alguns dias após, repetiu-se o assalto. Desta vez, justamente na estrada geral Brusque – Blumenau. Ocasião em que o caso foi levado ao conhecimento do Governo, que, de imediato, decidiu enviar 500 marcos para a perseguição dos selvagens, mandando, outrossim, um contingente de bugreiros para uma batida. Antes de sua partida [de Brusque], tive ocasião de fotografá-los.




[1] Pe. Francisco Schüler scj, da Província Alemã. Na ocasião, há 100 anos (1905), era Coadjutor da Paróquia de Brusque. Também trabalhou em Paraty (Araquari) e São Bento do Sul. Faleceu em Brusque (1926).
[2] Pe. João Stolte scj, da Província Alemã. Na ocasião, era Coadjutor de Brusque, e visitava as capelas de Porto Franco (Botuverá).


Os Bugreiros, antes de partir


A seguir, passo a descrever-lhes essa batida, baseando-me no jornal católico Der Kompass [A Bússola] de Curitiba. Esse contingente de 16 homens era comandado pelo famoso batedor de bugres: Martinho Marcelino[1], de Angelina. Viera ele especialmente com o objetivo de cumprir essa difícil campanha. Aos 4 de fevereiro [1905], o grupo se deslocou na direção da floresta. Antes da partida, já se pusera à disposição do chefe e dos seus comandados tudo quanto fosse necessário para a execução da difícil empreitada.
Até Ribeirão do Ouro, viajaram em carroças. No dia 5, Martinho, acompanhado de três homens, deu início a um trabalho de reconhecimento e de exploração do terreno. E concluiu que o local de permanência dos selvagens não podia ficar muito distante. A tarefa de reconhecimento durou três dias.
No dia 9, bem cedo,  os 16 homens se embrenharam na mata, e avançaram em direção ao Sul, seguindo as numerosas trilhas, os novos ranchos de bugres, distanciados de 4 a 5 km um do outro, e abelheiras colhidas pelos selvagens. Nada encontraram no lugar onde esperavam surpreender os índios.
Após terem passado cinco dias no mato, e terem sido obrigados a atravessar, de diversos modos, rios de forte correnteza e avolumados, por eles tidos como afluentes do rio Tijucas -, a expedição encontrou um rancho que, segundo todos os indícios, havia sido abandonado recentemente, e no qual encontraram um pilão, muitas ervas socadas, e um cadáver de bugre envolto em folhas de caeté. A turma fez aqui uma parada. Com três homens de sua comitiva, Martinho iniciou novos reconhecimentos. Bem próximo daí, encontrou duas trilhas: muito limpas, e tendo a forma de cruz. No ponto central da cruz, viu ele um tronco de árvore falquejado, e cujos lados estavam com inscrições ou rabiscos. Sentindo nas imediações algum rumor de índios, Martinho subiu numa árvore, de onde pôde avistar um grande ajuntamento de selvagens. Mas ao descer, foi picado por uma jararaca. Logo após o primeiro curativo, retirou-se com os três companheiros para encontrar-se com os demais da expedição, e comunicar-lhes o resultado dessa exploração.
Martinho chegou à convicção de que seria muito grande o número de selvagens, e insuficientes os seus 16 homens. Razão pela qual contratou, em Ribeirão do Ouro, mais 7 homens. De sorte que o grupo de batedores subira para 24 homens. Com eles, e abastecidos com suficientes mantimentos -, novamente partiram, aos 17 de fevereiro, para o local de onde tinham avistado os selvagens. Aqui chegados, constataram que os índios haviam abandonado o local, e tomado a direção para o Oeste. Provavelmente, porque sentiram a proximidade de seus perseguidores.
Continuando a sua pesquisa nessa direção, e superando obstáculos de toda sorte, conseguiram eles vencer uma grande distância pela floresta. Com jangadas improvisadas, tiveram que transpor correntes fortes e avolumadas. No dia 23 de fevereiro, descobriram 94 ranchos cercados de fortificações. Neles encontraram muitas jararacas mortas que, segundo eles, eram 62. Também havia 112 abelheiras colhidas. Era como se fosse o resultado de uma caçada. Nesse dia 23, sentiram que os bugres estavam nas proximidades.[2]
Mas antes de dar início ao combate, houveram por bem fazer um levantamento da situação. O ataque foi realizado no domingo de 26 de fevereiro, às duas da madrugada. Alguns do grupo assim relataram o episódio: Naquela escuridão, era preciso cuidar que ninguém dos 24 homens se perdesse. Caminharam, pois, na seguinte ordem: o último homem da fila ia de mão dada com o da frente, até o final. Ao passo que o Chefe Martinho, encabeçando a fila, tinha na mão uma lamparina acesa. Dirigiam-se para o local onde, durante o dia, haviam descoberto os ranchos. Depois que o pessoal, e no maior silêncio, alcançaram a meta, foi dado um sinal, e efetivou-se o assalto. Criou-se uma enorme confusão. Da parte dos selvagens, tudo eram gritos, maldições e um berreiro infernal. Os componentes do grupo nada comentam.[3] Mas é fácil de compreender que eles cometeram uma grande chacina. Depois disso, levaram tudo quanto encontravam nos ranchos. Inclusive um menino-índio, na idade de 8-10 anos. Encontraram uma grande provisão de carne de anta, e armas.



[1] Martinho Marcelino de Jesus Martins, sentado, à esquerda. Nasceu em Índios, na região de Lages (SC). Depois das caçadas em Brusque e Angelina, foi contratado para as de Blumenau. Os bugreiros da foto “eram todos luso-serranos” (Ademir Martins, neto do Martinho Marcelino). Hoje, para os índios da região, o termo científico e adotado é “xokleng”. Evitam-se os tradicionais “bugre”, “botocudo” e outros.

[2] A meu ver, tão elevados números lembram os proverbiais exageros venatórios...
[3] Porquanto, oficialmente, os índios só podiam ser afugentados...




Vicente Schaefer e o menino - índio

Após terem passado quase todo o mês de fevereiro no mato, o grupo voltou a Brusque no dia 4 de março. Como troféus de vitória, o grupo trouxe os encontrados objetos. Sua relação é interessante: mais de cem flechas, uns vinte arcos, muitas grandes e pequenas lanças de exóticas formas, dardos, ferramentas, três sacos de colares, tesouras, navalhas, facas, artefatos de folhas-de- flandres, cordas, bonitas cestas, um cachorro e até uma estola clerical. Além de outras miudezas aqui não referidas, devem registrar-se: braceletes, dedais, espoletas, cartucheiras, fivelas, anéis de prata de corrente, muitas peças de relógio, dentes de animais e unhas de anta. O pequeno capturado índio pertence, ao que parece, à tribo dos botocudos, pois traz no lábio superior uma cavilha.[1]
Aqui termina o relato do correspondente do jornal Der Kompass. Pelo visto, ele não chegou a ouvir nada desse “mistério” já tornado público: as cenas horrorosas ocorridas na mata virgem de Brusque. Comenta-se, bem de público, que, nesse assalto do domingo de 26 de fevereiro, foram trucidados uns 80 (há quem diga 200). Tudo seguiu o sistema adotado na revolução: já basta a troca de tiros; entre agora em ação a faca...[2]
É impossível que tão desumana barbárie esteja nas intenções do Governo, que envia as tropas para afugentar ou expulsar os bugres. Ora, tal medida pode efetuar-se à luz do dia. Não é necessária a proteção da noite. Mas quando no homem irrompe a fera, ela é mais sanguinária que a hiena ou o tigre. A noite é sobremodo propícia a tais assaltos. Porquanto, consabido é que os nossos selvagens, em seu despreocupado viver, ficam muito satisfeitos com um sono saudável. Mas assaltados durante a noite, eles estarão totalmente transtornados; e o pânico entre eles toma tais proporções, que não conseguem oferecer resistência, nem tomar a fuga. Devendo ainda levar-se em conta a sua covardia. De maneira que não será difícil liquidar tudo a fio de facão.
Mas com isso, a besta humana ainda não estava saciada. É voz corrente que o grupo capturou oito crianças. Pelo caminho, e talvez por falta de mantimentos, sete delas foram despachadas para uma vida melhor! Será possível pensar algo mais terrível? Qual poderia ser a culpa das crianças, se os pais, premidos pela fome e pela penúria acabam cometendo violências de latrocínio e assassinato? Se for esta a civilização para a qual pretendamos conduzir os nossos silvículas, então não podemos levar a mal que não sejam receptivos à nossa cultura. Terão os índios conhecido os brancos de outro modo que não o bárbaro? Só aqui e ali, acontece que cheguem a ver um branco. E muitos dão prova de que, nesses casos, não tratem logo de lhes apagar a vida. Portanto, exige-se mais humanidade! Só depois de ficar provada a total inutilidade da catequese, podem justificar-se tais cenas selvagens, quais as que vêm acontecendo em nossas matas: onde os gigantes da mata virgem são mudas testemunhas “dessa humana obra cultural”.[3]
[d] Também da Colônia Angelina veio a notícia de um assalto. A vítima foi o colono Jacó Gensleuchter. Além de saquearem a sua casa, mataram-lhe a esposa. Comenta-se que ela se teria defendido com bravura. Em troca, teve de suportar terríveis torturas de lanhos e pontaços no corpo. Mas não morreu logo. Ao cair da noite, ainda continuava dando sinais de vida.
Pouco depois do assalto ao colono Jacó Gensleuchter, os bugres voltaram a manifestar-se, matando algumas reses. Era hábito enviar os assim chamados caçadores de bugres para o mato, sempre que os selvagens praticassem algum mal. Também para este caso. O grupo armado alcançou o 1º rancho. Mas este e os 39 seguintes estavam despovoados. Só no 41º foram encontrados os bugres. Em geral, os ataques eram efetivados durante a noite. Mas desta vez, teve que fazer-se de dia. Um grupo assaltou rancho-adentro e deu início à sua sanguinária operação. Enquanto o outro alvejava com a espingarda os bugres fugitivos. No meio dessa confusão, um dos bugreiros levou um tiro de pistola na perna. Mas foi o único ferimento sofrido pelos bugreiros.
Quando se pergunta acerca do número de bugres mortos, a resposta é: nenhum. Porque o só objetivo, segundo eles, era afugentar os índios, os quais não mais voltariam. Os bugreiros trouxeram daquele assalto objetos que os selvagens haviam roubado em assaltos anteriores, tais como: peças de roupa, ferragens, uma porção de cartuchos miúdos e um pala que pertencia a um viajante de Brusque, o qual, tempos atrás, fôra assaltado na estrada que passa por Angelina. Além disso, também trouxeram flechas e arcos, cestas e outras coisas semelhantes. Daquele assalto também trouxeram: três meninas e dois meninos, e cujo corte de cabelo era tão rente e tão exato, como se feito com máquina de cortar cabelo.[4]
O Governo encaminhou as crianças para um Orfanato Católico, onde foram batizadas. Tive a alegria de as fotografar. Envio a bonita foto para o seu “Reino do Coração de Jesus”.[5]



[1] O menino-índio João Indaiá Schaefer, adotado pelo casal Vicente Schaefer (Pref. Mun.) e Maria Rosa Bauer. Que também adotou a mocinha-índia Ana Angantina Schaefer, de Blumenau. Ver foto final
[2] Esta grande diferença numérica vem somar-se às dúvidas suscitadas na nota nº4.
[3] Hoje, ainda que rejeitem a Catequese, não se justificam tais crueldades. Note-se que os índios atacavam porque a colonização lhes tomava o espaço de caça e coleta.
[4] As 5 crianças foram batizadas, e confiadas à Associação de São Vicente de Paula (São José). Mais informações no livro do tradutor: Tragédias Euro-Xokleng e Contexto, pp.159-167.
[5] Era a revista mensal da Província SCJ Alemã. O artigo foi publicado aos 05-07-1905.


As cinco crianças-índias e o Pe. Schüler


Impõe-se-me um pensamento: Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem [Sl 126]. Caso no Brasil a Fé Cristã deixar de impregnar a vida toda, a obra cultural será vã.


Família Schaefer. Ver nota nº6


Na frente: menino-índio, V. Schaefer, Arnoldo (filho) e Maria Rosa Bauer (esposa).
No alto: Teresa Schaefer (sobrinha) e mocinha-índia.
Nota – A foto foi anexada pelo tradutor, que a recebeu da Sra. Maria Rosa (1955).

O texto original e as fotos encontram-se no Arquivo Provincial Padre Lux (APPAL), de Brusque. Digitadora: Karina Santos Vieira.




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